Se existe um povo de fé, esse é o baiano. A religiosidade faz parte de sua identidade cultural e é comum ele levar no peito guias e crucifixo. Bate cabeça para orixás e ajoelha diante da Virgem. Reza e dança. E a Bahia conquista assim o direito de falar com todos os santos!
Texto: Simone SerpaFotos: Marcos Lima
Praia espetacular é Bahia, Carnaval e timbalada também, mas logo a memória desperta para outras delícias: o sabor quente do acarajé, o cheirinho de dendê, o som do berimbau, a brisa em céu azul-profundo. As artes que brotam lá todo brasileiro conhece um tanto. Agora, não há como aterrissar nesse pedaço de Nordeste sem se deixar tocar por sua característica maior: a Bahia é a mais pura celebração da fé. O dia de São João é mais festejado do que Natal. E não inclui apenas comidas típicas e fogueiras, não. Para o santo, se faz novena, que é encerrada minutos antes do início da festa. Todo primeiro de junho há a trezena de santo Antônio, uma delas realizada ao ar livre, bem ali, em frente ao elevador Lacerda, a entrada do Pelourinho. A festa de Iemanjá só perde para o Carnaval... E a fé não se manifesta apenas na rua, ela também está nas casas. Basta entrar em um típico lar baiano que logo se vê um oratório, ou simplesmente um nicho na parede, repleto de santos. Sem falar nos colares do candomblé pendurados na cabeceira da cama, nas esculturas de orixás na decoração, nas fitas do Senhor do Bonfim por todos os lados. Cabe a pergunta: de onde vem tanto fervor, que não se limita às fronteiras de tempo nem ao pragmatismo da vida de hoje? Há quem veja a origem da fé baiana na fusão de elementos de diferentes culturas, que permitiu que códigos do candomblé, trazidos da África, fossem assimilados pelas igrejas católicas e vice-versa. Para o culto africano, isso não representa um problema, seus freqüentadores podem seguir outras religiões, embora haja casas de santo com postura não sincrética. “É muito comum, portanto, que os afro-descendentes no Brasil atendam os dois lados – santos e orixás -, aumentando assim as possibilidades de fé”, diz Roberval Marinho, professor da Universidade Católica de Brasília e pesquisador das religiões afro-brasileiras, com três livros publicados sobre o assunto.
A FORÇA DO SINCRETISMO
Uma das muitas festas que mostram o sincretismo é a de santa Bárbara, em 4 de dezembro. Nesse dia, a população se veste de branco e ver melho e acompanha o trajeto do caminhão de bombeiros. No alto, ele leva a estátua da santa, que, no candomblé, é Iansã. Enquanto o carro passa, com a sirene ligada, muitas pessoas recebem o santo na rua. “O sincretismo aconteceu em função de características mais ou menos comuns de orixás e santos. Mas essa correspondência é frágil porque eles são, na verdade, absolutamente diferentes”, ressalta Edilece Couto, professora de História das Religiões da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Ela cita como exemplo a própria santa Bárbara: o que podem ter em comum santa Bárbara, mártir e virgem cristã do século 3, e Iansã, orixá do fogo, cujo arquétipo é de uma mulher impetuosa e sensual? A semelhança entre as duas está nas funções que desempenham. Ambas são capazes de provocar relâmpagos, trovões, raios e tempestades.
O ATABAQUE ENTRA NA IGREJA
Na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que fica no Pelourinho, as missas são realizadas com atabaques e cantos afros. “Há pessoas que recebem o santo aqui dentro”, garante uma freqüentadora da igreja e que também é filha-de-santo. Em outubro, mês em que se comemora o aniversário da construção da igreja e da fundação da irmandade, há uma procissão em que a comunidade caminha com as contas do candomblé e os símbolos do catolicismo. O sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo, estudioso das religiões africanas, enfatiza que o sincretismo na Bahia é oficial. Está im pregnado na literatura de Jorge Amado, nas artes plásticas, com Carybé, no cinema de Glauber Rocha, no teatro de Dias Gomes e na música de Dorival Caymmi, Caetano Veloso e tantos outros. Para Roberval Marinho, uma das explicações para essa religiosidade é a mistura de filosofia e cultura: “Os negros trouxeram a filosofia das culturas ágrafas, ou seja, que não dominavam a escrita. Seu conhecimento estava na cabeça e precisava ser passado adiante através de festas e outras manifestações culturais. Assim, para os africanos, o presente era o único tempo existente. Ser religioso para eles significava viver o momento em plenitude, celebrar a vida e usufruir dela da melhor maneira possível. Já as culturas gráficas, no caso o catolicismo, vindo da Europa, podiam ter seu conhecimento guardado em livros e recuperado depois. Elas aprenderam, então, a viver um tempo futuro, adiaram a alegria e até mesmo a vida para depois da morte”. Em conseqüência dessa maneira de pensar, os negros que chegaram ao Brasil sobreviveram como puderam e ajustaram seus hábitos, inclusive os religiosos, aos do mundo que encontraram aqui. “Se para eles não havia vida após a morte, então era preciso viver a qualquer preço”, afirma o pesquisador de Brasília.
MOMENTOS DE ENCONTRO
Assim, os orixás, depois de reprimidos pelo catolicismo, receberam nomes de santos e continuaram cultuados. “Foi com esse jeitinho que, aos poucos, se estabeleceu essa grande religiosidade”, diz Roberval. Some-se a isso a repressão. Quanto mais a Igreja, a elite branca e a polícia tentavam coibir os festejos religiosos, mais eles cresciam em entusiasmo e pompa. Edilece Couto destaca que até o século 19 não existiam muitos divertimentos em Salvador. As festas ligadas à religião eram uma oportunidade para encontros familiares, namoros, fortalecimento de identidades étnicas. “No século 20, com o aparecimento de cinema, teatro, Carnaval, elas perderam parte da função social, mas permaneceram como a afirmação da identidade, principalmente da população afrodescendente”, ressalta Edilece, que pesquisou festas religiosas da Bahia em seu doutorado na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp).
OGUM MAIOR QUE TUDO
O sociólogo Reginaldo Prandi sugere outras explicações para as manifestações religiosas na Bahia: “Os elementos da religiosidade são intencionalmente expostos, usados para desenhar o perfil sui generis da cidade de Salvador”. Assim, esculturas de orixás do artista plástico Tatti Moreno decoram, imponentes, o dique do Tororó. As festas, como a de Iemanjá, lavagem do Bonfim, Nossa Senhora da Conceição da Praia e muitas outras, fazem parte do calendário turístico da cidade. “Na Bahia, a fé foi assumida do ponto de vista turístico e permitiu a perpetuação de muitas festas públicas que se perderam em outros lugares do Brasil”, observa Prandi. Como diz o povo do candomblé: Ogum é maior do que tudo isso!
Texto: Simone Serpa
Fonte: http://bonsfluidos.abril.uol.com.br/livre/edicoes/0106/03/03.shtml